O final de tarde naqueles dias de verão no Alto Douro era na verdade o início da noite. Tarde. 10 da noite.
José Mendes preparava uma sopa de legumes, uma taça de vinho e pouco depois já estava na cama.
Faz dois anos que ficou sozinho.
Cláudia foi embora com um trabalhador da colheita e não deu mais noticias.
Seu filho Paulo mora em Madrid e só aparece para as festas de final de ano. O que continua igual, sem nenhuma alteração negativa é a qualidade dos vinhos.
Zé Mendes não economiza na hora de produzir um dos melhores vinhos da região. Sabe que a qualidade das uvas é excelente.
Vinhas velhas, local ensolarado, terroir perfeito.
Por isso compra as melhores barricas, boas garrafas, rolhas de qualidade e um rótulo moderno. Bem moderno!
Miguel trabalha com ele desde os tempos de vacas magras. Trabalha e atrapalha. É um trapalhão. Se mete em tudo, da palpite em tudo e quer fazer tudo. Do seu jeito.
O ano de 2003 ficou na história não pelos vinhos, mas pelas trapalhadas de Miguel.
O baixinho com cara de envocado cismou que faria o corte dos vinhos. Antes da colheita tocou no assunto com Zé, mas ele deu risada, debochou do amigo.
Numa prova dos vinhos das barricas novas repletas de Touriga Nacional, Tinta Roriz e Touriga Franca, Zé falou em voz alta: "Amanhã começo a provar para decidir o corte"
Miguel tinha o gosto diferente de Zé. Gostava de vinhos macios, cheios de fruta e mais fáceis de beber.
Zé dizia que entendia o mercado, que os vinhos precisam ter corpo, cor, potência...
Quando Miguel olhou pela janela da cozinha, viu Zé Mendes servindo-se da sopa e correu para a Adega.
Colocou em um frasco Touriga Nacional, em outro a Touriga Franca e em outro a Tinta Roriz. Entrou no laboratório e começou suas experiências.
Passou a madrugada inteira.
Pela manhã Zé Mendes encheu os frascos e foi para o laboratório. Porta trancada!
Zé foi atrás de Miguel e perguntou o que teria acontecido. Miguel do alto de seu 1 metro e meio e de sua cara de mau disse em voz alta: "Trabalhamos juntos há 21 anos, fiz tudo que se pode fazer nos vinhedos, participei de tudo, menos do corte final. Este ano não abro mão"
-Ficou louco Miguel? Somos amigos, mas sem exagero, quem manda aqui sou eu!"
No exato momento uma camionete (lá chamada de Carrinha) de uma importante loja de Matosinhos parou. Desceram 3 pessoas que pediram para provar o vinho para uma possível encomenda. Quando Zé Abriu a boca para dizer que os vinhos não estavam prontos Miguel atropelou: "Se faz favor, entrem".
Zé quase partiu pra cima de Miguel, mas o baixinho olhou com cara de poucos amigos e acalmou o patrão.
-A garrafa está sem rótulo, fiz o corte nesta madrugada.
-Por que a madrugada, alguma superstição?
-Sim, faço sempre em noites de lua cheia e sem luz artificial.
Zé quase caiu na risada, mas tinha vontade de pular no pescoço de Miguel.
Enquanto isso ouvia suspiros e elogios:
-Que elegância...
-Equilíbrio...
-Explosão de frutas...
Zé provou uma taça e também aprovou.
Mais tarde Miguel se vangloriava.
Zé não dava o braço a torcer, mas engarrafou os vinhos com o corte do amigo.
As garrafas foram vendidas com rapidez o que leva a crer numa nova disputa para os próximos anos.
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