domingo, março 08, 2015

SE BEBER, NÃO REDIJA - Por Zé Carlos Conte




Vinho & Guerra tem 255 páginas. Não precisava tanto porque os autores Don Kladstrup e sua mulher Petie parecem erguer um brinde a qualquer coisa, sem separar história de boato, simples versão ou de lugar-comum. Tirando o desperdício de papel, o problema se agrava à medida que pretendem informar como os franceses, especialmente alguns proprietários de famosas vinícolas, se comportaram para proteger suas preciosas garrafas da sanha nazista, pouco antes e durante a 2ª Guerra Mundial.
Editado pela Jorge Zahar, Vinho & Guerra se compromete já na orelha – “Uma narrativa de tirar o fôlego”, escrevem. Tá longe... Aliás, Don e Petie insistem em coisas como “revelou uma autoridade”, “sustentou um oficial” etc, sem esclarecer quem é fulano ou beltrano nem enviando, por asterisco, à alguma parte do livro. Mas ela existe, senhores, no final do livro, e leva o nome de “Notas”. Lá também se encontram “Glossário”, “Bibliografia”, “Agradecimentos” etc, burocratizando a vida do leitor.
Certo que nem tudo é buraco. Mediante entrevistas com familiares ou parentes de pessoas que viveram a ocupação da França pelas tropas do Terceiro Reich, o casal pesca umas boas.
Diante das ameaças de saques e exploração econômica (consta que os nazis estabeleceram uma balança comercial viciada de tal maneira que o marco deixava o franco sempre na pindaíba), agricultores e produtores recorreram a truques e tramóias para ocultar as melhores safras.
Como? Muitas vezes rotulando com as melhores marcas os vinhos mais bastonados; noutras, erguendo paredes falsas nas adegas para esconder o do bom. Acrescentavam toques realistas a partir da colocação de teias de aranha nas garrafas e nos muros novinhos. Também enterravam os tesouros em jardins, fundo de lagos, onde desse para enganar.
Registre-se o esforço dos autores para arrancar depoimentos de franceses e alemães. Muitos dos primeiros colaboraram desde o início com as forças invasoras e mantêm providencial amnésia. No caso dos germânicos, quem topa falar do período 1939-45 que sacudiu a Europa, matando, escravizando e destruindo?
Vai daí que Don e Petie passam a discorrer com auxílio de historiadores.
Se destrinchar o passado não é coisa fácil, imaginem o tanto de dificuldade para superar as consciências coletivas envolvidas no processo... O diabo é que coisas banais ocupam espaço e ficam naquela do ‘sem registro - sem registro...’.
Exemplo: Adolf Hitler era ou não um habitual consumidor de borgonhas, bordeaux, champagnes, líquidos finos? Gostava de entornar umas e outras, ou seu prazer terminava no justo momento em que a rapaziada amiga pegava fogo?
Ilustrando, pág. 9: “De fato, nem sequer gostava de vinho. Esse homem era Adolf Hitler.” Agora, pág. 61: “Os historiadores dividem-se quanto à extensão do ascetismo de Hitler. Enquanto alguns dizem que ele absolutamente não bebia, outros afirmam que ele tomava cerveja e vinho diluído frequentemente. Segundo um biógrafo de Hitler, Robert Payne, ‘seu ascetismo era uma ficção inventada por Goebbels para enfatizar (...) a distância que o separava de outros homens’”.
Dá pra entender?
Incompreensível também foi o comportamento do marechal Philippe Pétain, que trocou a embaixada francesa na Espanha pela chefia do novo governo de Vichy, na Terceira República. Desde o início ele procurou evitar problemas, conclamando o povo francês à concórdia com os alemães invasores. Desprezava a luta da Resistência, viu e fez muito por uma abjeta conciliação.
O tempo passou e, em agosto de 1944, Pétain renunciou ao cargo. Posto sob “custódia protetora” pelos alemães vagou de castelo em castelo até junho do ano seguinte, quando deixou a Alemanha e retornou à França. Tinha quase 90 anos de idade. Foi preso, acusado de traição e levado a julgamento. Em sua defesa, disse:
“Eu tinha uma única meta, proteger-vos do pior.”
Pétain foi condenado à morte (semanas depois, De Gaulle, no poder, comutou a sentença em prisão perpétua).
Assim como o velho marechal, outros 160.000 franceses foram formalmente acusados de colaboracionismo pelo novo governo da França. Das 7.000 condenações à morte, 800 se consumaram; 38.000 pessoas realmente pegaram cana.
Nos casos e contas apresentados pelos autores deste Vinho & Guerra, papel importante foi o desempenhado pelos weinführers – “comerciantes de vinho fardados” ou “agentes para a importação de vinhos da França”, assim chamados pela equipe econômica do Reich. Função: comprar tanto vinho francês bom quanto possível e enviá-lo para a Alemanha, onde seria vendido internacionalmente com enorme lucro para ajudar a custear a guerra do Terceiro Reich.
Para ser escolhido como tal, o sujeito deveria reunir duas qualidades: conhecer perfeitamente o produto e manter ótimas relações com a cúpula nazista. Caso de Louis Eschenauer, destacado comerciante de vinhos de Bordeaux. Seus estreitos laços com a liderança alemã o levaram à fortuna, durante a guerra. Antes, consta, teria se aproveitado da Lei Seca (década de 1920), para remeter vinho para seus clientes nos Estados Unidos engarrafando-o em frascos de perfume.
Se cabia...? Bom, segundo os titulares do livro em questão, não só coube como também rendeu muito dinheiro para o francês que mais tarde se tornaria sócio do alemão Joachim von Ribbentrop, ministro das Relações Exteriores do Terceiro Reich.
Quando a casa caiu, isto é, quando os nazis puseram o pé na estrada de volta à Alemanha, Louis foi preso sob acusação de “tráfico com o inimigo” e “colaboracionismo econômico”. Defendeu-se assim:
 “Eu salvei os vinhos de Bordeaux. Dei só rebotalhos para os nazistas.”
Os escritores-jornalistas Don e Petie Kladstrup asseguram que não.
“Rebotalho? Segundo registros forenses, entre os vinhos (32.000 garrafas) que Eschenauer vendeu em 1944 estavam Châteaux Margaux, Châuteau Cos d’Estournel, Mouton-Rothschild, Brane-Cantenac (...)” Só coisa finíssima, assinalam.
O julgamento do vendedor-colaborador terminou em 1945, exatamente no Dia do Armistício que marcou a vitória sobre a Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Os juízes o declararam culpado de todas as acusações, incluindo aquela de ser comprador das propriedades que os nazistas confiscavam dos judeus. Sentença: dois anos de prisão, multa, perda dos direitos como cidadão francês.
“Louis simplesmente foi longe demais”, disse um cidadão de Bordeaux que o conhecia.
(A Seleções de Riders Digest não faria melhor.)

Zé Carlos Conte

Zé Carlos Conte é um dos jornalistas mais brilhantes que conheci. 
Ele sempre tem um texto maravilhoso e  fora do comum.

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