Félix não tinha paixão maior no mundo do que os vinhedos.
Os pais venderam a propriedade no Laguedoc quando ele tinha 8 anos, mas ele nunca esqueceu os dias vividos por lá.
Morando em Paris e com uma vida nada fácil, Félix passava dias e noites planejando um verdadeiro Tour de France pelos vinhedos do Hexagone (modo carinhoso que os franceses chamam seu país pela forma de haxagono).
O trabalho como sommelier em um hotel 4 estrelas dava um dinheiro suficiente para vive sem luxo, mas bebia os melhores vinhos do mundo.
Félix não tinha carro (não precisava de carro em Paris), mas sua viagem teria de ser de carro. Queria parar nos vinhedos, conhecer as pessoas, lembrar da infância.
Um Peugeot 1982, bem usado, barato.
Esse foi o investimento de Félix para sua viagem.
De Paris até o Loire nenhum problema. Distância pequena, estrada boa, correu tudo bem.
Lá Félix conheceu uma lenda: o grande Didier Dagueneau.
Passou horas conversando com ele, cerca de 3 meses antes da morte do produtor na queda de um ultraleve.
De lá partiu para Bordeaux e a viagem que duraria cerca de 5 horas levou 12. O tal Peugeot cismava em esquentar. Um super aquecimento que seria normal se fosse verão, mas não era. Foi uma primavera de sonhos.
De Château em Château, Félix provou preciosidades, conheceu histórias fantásticas e de tempos em tempos lamentava o destino dos vinhedos dado pelos pais.
No caminho pelo sudoeste o carro deu sinais de fraqueza, subia com um esforço inimaginável.
Félix precisou parar para dormir em uma propriedade que produzia magníficos patés.
Nada de tempo perdido. Aquilo foi uma festa para os sentidos.
Seguindo para o Languedoc, o coração de Félix batia forte, os olhos ficavam molhados e o Peugeot seguia. Esquentando, parando, água, água, água...
Enfim, a chegada ao antigo vinhedo da família.
Félix precisou de mais de 1 hora para se recompor.
Os fantasmas do passado estavam em toda parte.
O lago onde nadava e pescava com o pai.
A escada onde caiu e ganhou uma cicatriz que vai carregar pro resto da vida.
E os vinhedos onde corria, brincava e passeava com o pai brincando com joaninhas.
-Bonjour, Monsieur Patrick est là?
Monsieur Patrick era pura simpatia. Deixou o garoto de mais de 30 anos à vontade.
Acompanhava os passos de Félix, mas evitava olhar para os olhos que lacrimejavam sem parar.
Entraram na adega e as lágrimas vieram acompanhadas de um choro incontrolável.
Foi lá que Félix provou um vinho pela primeira vez. Fora os pequenos goles, uma chupeta molhada no batismo e os vinhos misturados com água e açúcar, foi lá que o pai de Félix abriu uma garrafa e disse: Voilà, antes de irmos embora precisa conhecer o trabalho de seu pai. Embora seja muito jovem, não posso deixar de abrir uma garrafa de despedida.
O pai de Félix colocou pouco mais de um dedo de vinho em uma taça e disse para o filho: Coloque na boca. Deixe o vinho passear pela língua e boca. Tente deixar entrar um pouco de ar e agora cuspa.
Mais um dedo na taça e os dois conversavam sobre os aromas.
Por fim, mais um dedo de vinho e a autorização: beba!
Nunca mais Félix esqueceu aquele dia.
O pai vendeu os vinhedos para se tratar de um problema de saúde em Paris e perdeu a batalha contra a doença. A mãe morreu de tristeza pela falta do marido.
Depois do jantar Félix saiu para sentir o cheiro dos vinhedos na escuridão. Para ver o ataque dos javalis aos vinhedos mais próximos da estrada. Se sentiu de volta a infância.
No dia seguinte Monsieur Patrick preparou um presente especial.
Depois da despedida (agora Félix usava óculos escuros), Monsieur Patrick pegou uma caixa de vinhos e deu ao visitante.
Quando viu que se tratava da última safra produzida por seu pai Félix desabou no choro.
Entrou com rapidez no velho Peugeot para evitar o constrangimento e partiu.
No caminho passou pelo Rhône e Borgonha, mas parou apenas para dormir.
O carro deu trabalho em toda a viagem, mas chegou.
O trabalho recomeçou e a vida seguiu em frente.
2 anos depois, com muito sacrifício e uma bondade ímpar de Monsieur Patrick, Félix recomprou os vinhedos da família.
-Quando o passado teima em não sair da nossa mente, talvez ele seja nosso futuro...