segunda-feira, março 03, 2014

Filmes saborosos: Politiki Kouzina - O Tempero da Vida - Por Wania Westphal


Se você não gosta de cinema fora do convencional sugiro que deixe esse texto de lado, escolha um bom vinho, pegue sua taça, coloque a garrafa aberta na mesinha ao lado da sua poltrona predileta e vá assistir ao filme que está para começar daqui a pouco, na TV.  Dificilmente você vai encontrar  Politiki Kouzina, escrito e dirigido pelo grego Tassos Boulmetis. O longa de 2003, que não por acaso recebeu no Brasil o título  O Tempero da Vida, é um poema sobre as relações entre a gastronomia e a vida - também política -  de cada um. Você vai ter de procurar este filme, e garanto que não vai se arrepender.

As duas primeiras sequências não dão exatamente o tom do que vai aparecer nos 103 minutos seguintes. Os primeiros fotogramas que vão enchendo a tela são da mama nua de uma mulher, de lado, em close. A voz do protagonista ao fundo explica entre outras coisas que seu avô dizia que, em grego, a palavra ‘arroto’ aparece dentro da palavra ‘sonho’. Enquanto isso  entra em quadro a cabecinha de um bebê em busca de leite, tentando pegar o bico do peito. Uma recusa, um punhado de açúcar sobre o mamilo e pronto: o bebê começa a mamar, e com esse doce tempero a vida começa.





A segunda sequência mostra um flutuante guarda-chuva vermelho aberto se aproximando, vindo do espaço, entre as estrelas num céu escuro como pano-de-fundo para a apresentação do time: elenco, roteiro, direção, tudo em grego, com um fundo musical instrumental envolvente, responsabilidade de Evanthia Reboutsika.

Engano  imaginar que  trata-se de um filme intelectual, enfadonho. Isso é tudo o que Tempero da Vida não é. O guarda-chuva vai ser explicado lá na frente, em dois momentos, e tudo fica muito claro.

A linguagem de Politiki Kouzina é metafórica, mas de fácil compreensão. Basicamente porque gira em torno das conversas e aprendizados na relação afetuosa entre um neto, criança, e seu avô. E o que o garotinho Fanis (Markos Osse , depois Odysseas Papaspiliopoulos aos 18) aprende com papus Vassilis ("vovô" Tassos Bandis) vai além das valiosíssimas orientações sobre os melhores usos para cada tempero.





O avô é didático quando fala das deliciosas receitas gregas, riquíssima representante da cozinha mediterrânea – uma vez que assimila influências  muçulmanas que chegaram ao longo dos anos, em meio à crises políticas envolvendo os países próximos ao Mar Adriático.


Tudo começa com um Fanis adulto (o belo, porém canastrão George Corraface), professor de astrofísica na Universidade de Atenas que não vê há décadas o avô que tanto ama. Papus (vovô)  permaneceu em Istambul quando a família foi separada em decorrência da expulsão dos gregos que viviam na Turquia , na principal crise política na região no final dos anos cinquenta, começo dos sessenta.

Nos dias de hoje, papus pega todo mundo de surpresa ao ser hospitalizado às vésperas do que seria o reencontro com o neto e com os amigos de origem turca que também viviam na Grécia – um capítulo à parte, quatro senhores apresentados como ‘magnetizados’ porque se movimentam, os quatro, na mesma direção, sem perceberem a coreografia involuntária de seus gestos.
Fanis  decide voltar a Istambul, para rever o avô, e assim passa a recordar suas histórias, em cenas que chamam atenção pela beleza, delicadeza de tons, rendas, mobílias, cristais, cenários de uma cidade que começava a se apresentar ao mundo como uma das mais belas não só da Europa como da Ásia, os dois continentes  que ela ocupa.

O filme é apresentado como uma refeição, com entrada, prato principal e sobremesas.







À mesa grega, na infância de Fanis,  as primeiras aparições são os mezedes, as entradas, geralmente uma grande variedade de sabores onde dificilmente faltam dolmades (charutinhos de folha de uva), bekri meze (um picadinho de carne de porco com pimentões e tomates), saganakis (queijo empanado), tzatziki (uma espécie de patê com pepino e creme branco) keftedes (bolinhas fritas que lembram almôndegas) e outros pratinhos que geralmente ocupam todos os espaços de uma mesa grega minimamente bem posta. Na qual jamais faltará o ouzo, preparado como se deve: uma dose (três dedos) da bebida, num copo alto, duas pedras de gelo e água mineral para encher o copo e completar o drinque.

Papus (vovô) Vassilis passava noites inteiras fazendo essas iguarias , dizia que “os mezedes preparam você para uma viagem de aventuras.”

Uma aventura que começa no momento da escolha das matérias-primas. Não basta olhar e apalpar uma berinjela; é necessário ouvir o que uma boa berinjela  tem a dizer, por isso os gregos colocam o legume perto da orelha e o sacodem antes de optar pela compra.




Fanis pequenininho, de calças curtas, ficava sentado ao alto da escada que dava acesso ao mezanino do armazém de secos e molhados do avô onde a luz entrava às avessas, contra linguiças e réstias de alho penduradas para venda que mais pareciam objetos de decoração. Não havia sequer uma única dona de casa que não recorria aos conselhos do proprietário desse empório, não só para ouvir conselhos sobre as receitas como para captar uma dica ou outra que vinha camuflada sob umas pitadas de cominho.

“Senhor Vassilis sabia como evocar sem provocar”, define o bom homem que tornou-se médico do exército e acabou casando a bela Saime (Basak Köklükaya), primeiro e único amor da vida de Fanis.

O roteiro mostra que o papel da canela na culinária grega é quase tão importante e talvez tão sagrado quanto o do sal. (“As pessoas gostam de ouvir histórias sobre coisas que elas não podem ver! Que importa não ver o sal se a comida está saborosa?)





A canela também era usada como conservante quando não havia geladeiras.

Vassilis explica que um tempero, mesmo quando usado incorretamente, serve para “provar um ponto de vista diferente”. Outra dica do papus: “Em um almoço de família, não use cominho, porque ele é forte e torna as pessoas introspectivas.”

Observador, sabia que o neto adorava os astros, e comparava os temperos às estrelas: “Pimenta é o sol, que vê tudo, e por isso vai bem em todas as comidas. A seguir, Mercúrio e Afrodite,  também são quentes, como a canela: doce e amarga como todas as mulheres.” Mais uma sugestão emblemática de papus Vassilis: “Os molhos suavizam qualquer receita! Quando não usam molhos na comida sempre exageram nas conversas.”



 



Há momentos de puro bom humor. Como quando o tio Emilios (Stelios Mainas)  traz como presente , de uma de suas viagens, nos anos cinquenta, a primeira duduclu (panela de pressão) que acaba sendo usada indevidamente, cheia de quiabos até a tampa e levada ao fogo. O primeiro liquidificador também é trazido pelo tio viajante, em 1966. À tia Elpiniki (Kakia Panagioutou) eles entregam as tigelas cheias com alimentos que precisam ser sacudidos, o que combina perfeitamente com o Mal de Parkinson que a senhora manifesta em tempo integral - até o primeiro susto, que subitamente a cura. Há mais, muitos outros momentos para rir,  sem reflexão nenhuma.

Alguns ensinamentos  também ficam marcados ao longo de Politiki Kouzina:  “Há dois tipos de viajantes: aqueles que olham no mapa e aqueles que olham no espelho. Aqueles que olham no mapa estão partindo, os que olham no espelho estão voltando.”

Numa cena romântica entre Fanis e Saime, o diálogo:

 - A maioria das estrelas que a gente vê não existem. Vemos a marcas que deixaram no tempo – diz ele

- Nunca diga a uma mulher que não existem as estrelas que ela está vendo – ela responde.

Para pensar...


Politiki Kouzina é poético, espirituoso, didático, um pouco arrastado na parte final mas essencialmente belo. E é um filme obrigatório para quem aprecia os enigmas da gastronomia. Uma saborosíssima obrigação, que fique bem claro.

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