quinta-feira, novembro 03, 2011

Naquele dia o humor de George estava bouchonné



Michel trabalhava seis dias por semana, das 9 as 18, conhecia todas as regiões francesas, sabia o lugar exato da prateleira onde estava cada vinho, sabia o nome e o sobrenome dos clientes e era capaz de falar sobre cada vinho com uma exatidão de dar inveja a Robert Parker.
George era consultor da loja, tinha uma fama que ultrapassava os limites do hexágono (forma da França), era badalado, respeitado e bem pago.
Michel ganhava o suficiente para pagar o aluguel do apartamento de 25 metros quadrados na periferia parisiense, mas sempre dizia que o que aprendia no dia a dia valia a pena.
Uma característica daquela loja do Quartier Latin era a quantidade de rótulos de diversas regiões do mundo.
Turistas e franceses chegavam a fazer fila para ouvir as sugestões e explicações de Michel. George pouco ia na loja, escolhia vinhos de outros países para entrar no catálogo, falava apenas com o dono e o mais importante, recebia uma boa quantia todos os meses.
Michel se preocupava apenas com sua vida e seu trabalho, respeitava George e nem passava pela sua cabeça colocar em dúvida a capacidade e o salário do famoso consultor.
Quando tinha uma degustação, todos olhavam para George, tentavam até copiar os gestos e movimentos. A loja tinha 8 funcionários, mas quem trabalhava mesmo era Michel.
Até pela solicitação da freguesia.
George era um verdadeiro ídolo.
Um espelho para Michel.
Sabia degustar vinhos como ninguém.
Um dia chegaram novidades da Austrália.
Michel achava estranho a Syrah ser chamada de Shiraz, mas estava curioso para conhecer aquele novo produtor que segundo George tinha recebido 90 pontos da Wine Spectator.
Ninguém podia mexer na garrafa até que George chegasse.
E ele sempre demorava, pois ia fazer ginástica, jogar tênis, almoçava com bastante calma e depois chegava com o jornal em baixo do braço.
Naquele dia ele se dirigiu a Michel e disse: "Abra os vinhos australianos e traga para degustarmos. Chame todos os vendedores."
Em quinze minutos todos estavam a postos na grande mesa de degustação.
Logo no primeiro vinho George colocou no nariz, fez uma cara feia e disparou: Bouchonné!
Os outros colocaram o vinho no nariz e trocavam olhares.
Michel nem isso fez, apenas balançou a cabeça e disse em voz baixa: Il n' est pas bouchonné, monsieur!
Claro que está bouchonné, Michel, não discuta, coloque o nariz na taça e comprove.
Agora sim Michel colocou o nariz na taça, olhou fixo para o nariz pontudo que quase tocava a barba ruiva de George e disse: Não está bouchonné.
Os outros vendedores olhavam para Michel como quem olha para um aluno que desrespeita o professor, mas não ousavam dizer uma palavra até que George disse: "Digam a ele, o vinho está bouchoné ou não está?
Frederick balançou a taça, levou ao nariz e disse: Não.
George já estava irritado e dessa vez apenas ordenou: Pegue outra garrafa logo e vamos parar com essa conversa.
Michel se apressou, trouxe a garrafa e sem nenhuma cerimônia, colocou a garrafa bem visível e girou o Screw Cap.
George fingiu que não viu, provou logo os vinhos e se retirou.
Os funcionários sabiam que o fungo que ataca a cortiça não teria sofrido nenhuma mutação que fizesse com que passasse a levar seus estragos ao metal.

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